segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um sopro histórico de MPB. (6ª. Parte)

“Eu era menino
Mamãe disse: vamos embora
Você vai ser batizado
No samba de Pirapora
Mamãe fez uma promessa
Para me vestir de anjo
Me vestiu de azul-celeste
Na cabeça um arranjo
Ouviu-se a voz do festeiro
No meio da multidão
Menino preto não sai
Aqui nessa procissão
Mamãe, mulher decidida
Ao santo pediu perdão
Jogou minha asa fora
Me levou pro barracão
Lá no barraco
Tudo era alegria
Nego batia na zabumba
E o boi gemia
Iniciado o neguinho
Num batuque de terreiro
Samba de Piracicaba
Tietê e campineiro
Os bambas da Paulicéia
Não consigo esquecer
Fredericão na zabumba
Fazia a terra tremer
Cresci na roda de bamba
No meio da alegria
Eunice puxava o ponto
Dona Olímpia respondia
Sinhá caía na roda
Gastando a sua sandália
E a poeira levantava
Com o vento das sete saias
Lá no terreiro
Tudo era alegria
Nego batia na zabumba
E o boi gemia
Lá no terreiro
Tudo era alegria
Nego batia na zabumba
E o boi gemia.”

Esta letra é apenas uma das grandes obras de Geraldo Filme, conhecido como Enciclopédia do Samba Paulistano, sinônimo da auto-afirmação da cultura negra, “Seo” Geraldo, como os sambistas de todas as escolas respeitosamente o tratavam, teve passagem relevante como fundador, diretor ou colaborador, pela maioria das escolas de samba da cidade. A letra de Batuque de Pirapora é uma crônica da perseguição ao samba pela igreja católica em Pirapora do Bom Jesus, com ironia e talento ele criara um samba alegre e combativo, juntamente com Tradições e Festas de Pirapora, fez uma releitura do samba rural paulista, do qual a cidade foi o berço, essas músicas trazem elementos dos jongos, vissungos e batuques que aprendeu com sua avó, que entoava cantos do tempo dos escravos. Sua musicalidade também foi influenciada por seu pai que tocava violino nos choros e por sua mãe com quem aprendeu ritmo e dança.

O “negrinho das marmitas” como também era conhecido, já aos 10 anos de idade, fazia entregas para sua mãe que tinha uma pensão na Rio Branco, em frente ao palácio do governo, isso era 1937, ele e o Zeca da Casa Verde, que era filho de uma grande amiga de sua mãe, sempre andaram juntos, tanto que eles se consideravam parentes, cresceram, se formaram e viveram no samba. “Aí eu dizia: ‘Atravessa a fronteira’. Depois de entregar a marmita, ia onde estava minha gente. Era exatamente lá na Barra Funda, dividindo com os Campos Elíseos. Então ia pra Barra Funda e ficava lá no samba. (...) Lá no largo da Banana, na hora que folgavam um pouquinho, eles armavam um samba e a gente era moleque, ficava olhando os velhos, não deixavam a gente entrar na roda: ‘Sai daqui, moleque, chega pra lá’. A gente ficava apreciando ‘os coroas’ todos cantar e a gente guardou muita coisa e deu continuidade.” Geraldo Filme, Programa Ensaio, 1992.

“Minha avó não era brincadeira. Eu peguei um canto com a minha avó, que era o maior sarro. Dizia que as negas velhas escravas, quando nascia uma criança, entregavam pra elas como se fosse filha. Se a moça desse uma mancada então, elas sofriam demais. Então acontecia o seguinte: lá na senzala, enquanto a nega velha tomava conta da criança (como se fosse o partido alto hoje), os nego velho lá nas casinhas, no hora do samba, metia a bronca. Então eles cantavam um negócio assim:
Oi tiá, tiá, tiá
Oi tiá de Junqueira, tiá
Oi tiá, tiá, tiá
Ou tiá de Junqueira, tiá
Moça bonita
Delírio, tiá
Veja que coisa indecente, tiá
Deita sem estar casada, tiá
Fazendo vergonha pra gente, oi tiá.
Os negos cantavam e elas chegavam: ‘Pará com isso, zombando das meninas’. Então a tradução disso é que a escrava negra tinha que ir pra cama na marra e a moça branca ia por livre e espontânea vontade, e elas se sentiam mães daquelas crianças, elas é que ficavam envergonhadas.”

“A praça da Sé não foi fácil. Saía da Barra Funda e primeiro parava na praça Patriarca, era uma paradinha obrigatória, porque ali era a classe A da elite negra. Eram os clubes de negros que tinha, uns clubes enjoados, uns neguinhos cheios de tanta coisa. Dava um tempinho na Patriarca, passava na Direita e ai já começava a fazer samba nas latas de lixo. Ia subindo, tinha o Bar Café Viaduto. Enquanto eles tocavam valsa vienense lá, a gente fazia samba na lata do lixo do lado de fora. Chegava na Sé, João Mendes, ai a gente armava a roda do samba. ( ... ) A tiririca é o jogo da pernada. Naquela brincadeira, na época, não podia fazer samba na rua em São Paulo. Quem fazia samba ia em cana. Quem conseguia ia com uma moeda de dois mil-reis, que era dinheiro pra chuchu na época, no bolso, porque sabia que se cantava samba ia preso, pra pagar a carceragem. Tinha alguns policiais que tiravam sarro da gente. As meninas também entravam na roda, sambar, aquela brincadeira. Tinha um policial lá que tinha uma veia musical. Então ele chegava: ‘A cadeia tá suja! Vai todo mundo lavar’. Pelo menos ele cantava:
Vem cá, menino
Vem cá, menina
Ta tudo preso
Pra amanhã fazer faxina.
Levava a negada pra cadeia, de manhã lavava a cadeia e ia embora.”

E ele continua contando as histórias e mostrando toda a força do improviso do samba antigo paulistano, inclusive descrevendo melhor a tiririca, que faz lembrar-me dos agitos, nascidos na década de 1980, e até hoje praticados pela galera que curte um som pesado, um rock’n’roll mais visceral e dançam pogando, uma dança que também tem uma influência indígena.

“‘È tumba, moleque, tumba’ [cantando], isso ai, a gente brincava. Como não tinha instrumento, era na palma da mão, uma lata de lixo, caixa de engraxate, tudo que desse som servia. A gente armava a roda e ficava brincando de pernada até os homens chegarem. Quando os homens chegavam, acabava a roda. Era pra derrubar, brincadeira pesada mesmo. Eu caí, derrubei, cai também, não sou melhor do que os outros, não. Tinha uns caras da perna boa, não dava pra escapar da perna deles, não. Tinha vários: o Sinval, que está ainda hoje no Império do Cambuci, Guardinha, Pato N’Água, Perdigão. Tinha uma leva deles ai que, pra derrubar na roda, era difícil.”
continua .....

Nenhum comentário: