Era menino. Ponha triste e fica assim: menino triste. Tinha se demorado vendo os riscos que as formigas faziam no chão. Eram longos, atravessados na grama, cheios de caminhos tortos. Mas levavam em direção ao rio, as formigas talvez tivessem o buraco lá perto, antes um pouco da água. Ele tinha medo. Vira certa vez um afogado... mais parecia um balão cheio. Desejou que as formigas não estivessem ali, que, do outro lado do rio, pousassem suas vidas. Ou um formigueiro n’água.
Sabia que estava perto da hora. O pai passaria por ali, trocaria poucas palavras com a mãe. Ele não entenderia, nunca entendia. Depois veria a sua mala, as suas coisas na mão do pai. Ficaria essa impressão de cinzas deixadas sobre tudo. Queria estar só um pouquinho. Um pouquinho como aquele pássaro que achou sair da terra e abria-se alado para um voo esquisito. Demorou-se, mas o voo não saiu. Sem se mexer, ficou olhando como se arrastasse o tempo com grandes madeiras pesadas. O pássaro misturou-se à folhagem, ganhou movimento dos matos. Separado, numa outra árvore um sem-fim cantou.
- Sem fim, sem fim, sem fim...
O galo, perto dali, escapou em dança. Saci, nome de passarinho. Era seco. O menino correu para assustar a ave e não percebeu que pisara no rastro das formigas. O vento dera-lhe uma alegria súbita, movida pela ação de suas pernas, do coração em atropelo, do esquecimento da partida. Depois, no terreiro, aconteceu de sentir as folhas cheias de sol. Se montasse numa delas, rumaria para lá, onde as coisas não se precisam. Tirou o sapato, uma formiga estava esmagada, vermelha, dentro dele.
Veio a imagem, uma viagem, o carro atirado pela estrada de terra... poeira levantada, não se recordava para onde ia. O sol ponteava a vida em sombras de árvores, a língua colando no céu da boca. Não sabia definir aquela tarde, passagem de gosto breve, leve na sua curta presença, mas, ao tanto, o vento partia os galhos dos taquarais longos, o carro parou. A mãe e o pai saíram, uma ordem para ele. Imperativo, sairia também. Casa pequena, talvez esperassem por eles, parentes que jamais vira. Teria sorrisos e perguntas de pouco valor. Era assim mesmo. Isso não impressionava. Seus olhos correram a parede da frente, o vento ainda estalava as taquaras secas, adormecendo o tempo, dando carga ao passado. Ao lado da porta, viu. O sangue. Como se nunca tivesse percebido essa cor, descobriu o pássaro na gaiola. De boi. Uma gota veio planando pena em queda livre, escorrida do peito. Agora pouco importava a sede, as palavras dos outros, o que deveria cumprir, o corpo da ave derramou grená nos seus olhos, inundando as vozes, a poeira na língua, os sorrisos impressos em panos que se desmancham. O lugar tomava maneira de sol poente. Disso tudo, apenas a silhueta do sangue-de-boi alimentava o seu mundo infantil. Jamais ousara perguntar o motivo da viagem em direção a esse começo do que acabaria por todo o resto. O sangue de todos.
Refeito pela voz fraca da lembrança, o relevo do chão coberto pela copa da mangueira fazia com que seus pés desejassem a terra. Antes assim, nem partiria. Seria mais chão dos bichos, cama da chuva, diverso dos homens grandes, das mulheres que tragavam os dias em seus olhos fundos de desamparo. E, como solo, teria sempre uma formiga esmagada dentro...
Calçou o sapato, o pai já o esperava, o jeito cinza com as malas na porta da casa. Seu ar assumindo os ares. Limpou as mãos e foi andando, miúdo, para o aceno generoso do adulto. A tarde caía em cima dele. O sem-fim calou-se por um instante enquanto o mundo engolia homem e menino... Depois, repleto de sua vida entre asas, voltou a chamar pela noite.
sábado, 5 de setembro de 2009
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