domingo, 31 de maio de 2009

Um sopro histórico de MPB. (2ª. Parte)

Por um momento retorno a 1870, ano em que chega ao Rio de Janeiro, Hilaria Batista de Almeida, mais conhecida como tia Ciata, nascida no dia 23/4/1854, em Santo Amaro da Purificação, Bahia; cozinheira, sempre garantiu parte do sustento de sua família graças a seus famosos quitutes; fundou o Rancho Rosa Branca, um dos primeiros a existir no carnaval [rancho é o tipo de organização carnavalesca anterior a escola de samba]; filha-de-santo de João Alabá, de Omulu, como suas amigas tia Sadata (fundadora do Rancho da Sereia), tia Amélia do Aragão (Amélia Silvana de Araujo, mãe de Donga), tia Preciliana do Santo Amaro (Preciliana Maria Constança, mãe de João da Bahiana), tia Mônica, tia Bebiana e tia Gracinda (esposa do sacerdote islâmico Assumano Mina do Brasil). Em 1904 fixou residência na Rua Visconde de Itaúna, 117, em frente à Praça Onze, onde morou até morrer, em 1924. O casarão era uma legítima casa de cômodos, com seus 6 quartos, 2 salas, um longo corredor e quintal com árvores. Foi ali que escreveu seu nome como a figura de maior importância na criação do samba.

“A partir dos anos de 1870, na região que se estendia da antiga Praça Onze de Junho até as proximidades da atual Praça Mauá, compreendendo as antigas freguesias e localidades de Cidade Nova, Santana, Santo Cristo, Saúde e Gamboa constituía-se o núcleo principal da comunidade baiana na cidade do Rio de Janeiro, antiga capital do Império e mais tarde da República. Pólo concentrador de múltiplas expressões da cultura afro-brasileira, da religião à música, a região tinha como centro a ‘Pequena África’ (expressão usada pelo escritor Roberto Moura, baseado numa afirmação do artista Heitor dos Prazeres, segundo a qual a Praça Onze seria ‘uma África em miniatura’), berço onde se gerou o samba em sua original forma urbana.” Nei Lopes.

Tia Ciata realizava grandes festividades em sua casa, associadas às comemorações religiosas, pois também tinha sua casa de candomblé; desses festejos participavam todas as tias filhas-de-santo como ela, mais outras amigas como tia Veridiana (mãe de Chico da Bahiana), tia Dada, tia Josefa Rica e tia Tomásia, todas respeitabilíssimas Tias baianas, verdadeiros “úteros” geradores do samba. “Interessante notar que o tratamento 'Tia' é um misto de respeito e carinho usado para designar figuras que, pertencentes ao Candomblé, sobretudo de origem em Angola ou Congo, têm conforme preceitos religiosos, um certo grau ou muitos anos de iniciação, é um tratamento próximo ao de Mãe (Yalorixá).” A Mulher na MPB, Neusa M. Costa. Também eram presença garantida "os bambas" da época como Pixinguinha, Donga, João da Bahiana, Hilário Jovino Ferreira, Heitor dos Prazeres, Sinhô, Caninha, Didi da Gracinda, Marinho que Toca (pai do compositor Getúlio Marinho), Mauro de Almeida, João da Mata, João Câncio, Getúlio da Praia, Mirandella, Mestre Germano (genro de Ciata), China (irmão de Pixinguinha) e Catulo da Paixão Cearense. Foi neste ambiente, onde se juntavam fundadoras de Ranchos, conhecedoras de diversos ritmos e sons africanos, mães e avós de grandes compositores e ritmistas e esses “bambas” que nasceram, se criaram e tornaram parte deste meio, que surgiram diversos sambas, entre eles ‘Pelo Telefone’, festejado como o primeiro samba gravado na historia.

“A figura de Tia Ceata surge nos textos como realmente a figura propiciatória, aquela que cria condições para que ajam as forças da Natureza, tal qual age a Mãe de Santo, Yalorixá, no culto africano: sua ação não é de criar ou gerar, ela própria, mas sim a de favorecer, de participar com seu instinto, ‘força de axé’ e conhecimento do ato de criação.” A mulher na MPB, de Neusa M. Costa. “Rancho que saísse e não fosse à casa da Asseiata, não era tomado em consideração, era o mesmo que não ter saído. Os sambas na casa de Asseiata eram importantíssimos, porque, em geral, quando eles nasciam no alto do morro, na casa dela é que se tornavam conhecidos da roda. Lá é que eles se popularizavam, lá é que eles sofriam a critica dos catedráticos, com a presença das sumidades do violão, do cavaquinho, do pandeiro, do reco-reco e do ‘tabaque’.” Na Roda do Samba, jornalista Vagalume.

Quanto ao vocábulo “samba”, existem várias versões de seu nascedouro. Uma delas diz ser originário do árabe, mais precisamente mouro, quando da invasão desse povo à Península Ibérica no século VIII, sendo o termo original “Zambra” ou “Zamba”. Há quem diga que é originário de um dos muitos dialetos africanos, possivelmente do Quimbundo: “Sam” = dar, “Ba” = receber, ou ainda “Ba” = coisa que cai.

Vejamos o que diz Buci Moreira em depoimento a Fernando Faro, no Progama Ensaio, gravado em 12/12/1973. “Hilaria de Almeida, pseudominada [sic] Tia Ciata, porque foi ela quem fundou o primeiro rancho carnavalesco dentro do Brasil, chamava-se Rosa Branca. A minha avó era por sinal uma crioulinha muito bonitinha, sabe? ... Se eu fosse da época da minha avó, acho que a minha avó estava roubada, porque ela era uma belezinha de crioulinha, muito bonitinha e muito boa, distinta. Era da lei de candomblé, ela era mãe-de-santo. Aí ela chegou a curar inúmeras pessoas atrapalhadas de vida, doentes, pessoas doentes da alma; ela curava, ela tinha aquele dom... e, alias, ela me salvou, porque eu estive, em criança, desenganado dos médicos; ela me recuperou, foi ela quem me deu a vida. (...) Ah, inúmeros ... Aqueles boêmios todos da época andavam lá, os artistas todos da época. Pixinguinha, as vezes, ia e ficava em casa e não saia. A maioria chegava em minha casa e cismava de não ir embora pra casa, ficava ali mesmo. Lá tinha oito quartos, era grande pra chuchu! O João da Bahiana era permanente, a visita dele era permanente.”

Sua forma de tocar instrumentos de ritmo, que fez escola, e a maneira de dançar o samba “miudinho”, de forma magistral, que aprendeu com sua avó, tornaram-se sua marca registrada. Suas musicas foram gravadas por Francisco Alves, Mario Reis, Geraldo Pereira, Linda Batista, Carmem Miranda, Aracy de Almeida, Patrício Teixeira, entre outros. Seus principais sucessos são Não põe a mão, Quem Pode Pode, Não Precisa Pagar, Linda Tarde, Beijos, Festa na Roça, Porque é Que Você Chora, Anda Vem Cá. “O tamborim é que nós usava pesado ..., porque a policia repreendia na rua e os nossos pais repreendia ..., porque o samba é bom, e nós ficava nos quintais ‘tuco tico tuco tico tuco ...’, e aqui o couro comia, mas parece até que o samba ficou assim frenético devido as bordoadas que seus criadores recebiam, né?, pelos aplique, que a vara de marmelo comia... Porque naquele tempo era vara de marmelo, o jeito como que as nossas mães nos repreendiam... metia a vara de marmelo... e a gente às vezes saia pulando, mas aquilo no outro dia... vinha o samba outra vez, cada um pegava um pedacinho de pau, uma coisa qualquer e pronto, ia batucando. E ai eu fiquei muito forte em ritmo. Em ritmo eu sou forte mesmo. (...) Isso de fazendo ritmo já vem de, de ... eu creio que eu já nasci fazendo ritmo ... dez anos depois do meu nascimento, eu estava ritmando.”

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Um pouco sobre sorriso e lágrima


"Vossa alegria é vossa tristeza desmascarada.
E o mesmo poço que dá nascimento a vosso riso foi muitas vêzes preenchido por vossas lágrimas.
E como não poderia ser assim?
Quanto mais profundamente a tristeza cravar a sua garra em vosso ser, tanto mais alegria podereis conter.
Não é a taça que contém vosso vinho a mesma que foi queimada no forno do oleiro?
E não é a lira que acaricia vossa alma a própria madeira que foi entalhada a faca?
Quando estiverdes alegres, olhai no fundo de vosso coração, e achareis que o que vos deu tristeza é aquilo mesmo que vos está dando alegria.
E quando estiverdes tristes, olhai novamente no vosso coração e vereis que, na verdade, estais chorando por aquilo mesmo que constituiu vosso deleite.
Alguns dentre vós dizeis: "A alegria é maior que a tristeza", e outros dizem:
"Não, a tristeza é maior."
Porém, eu vos digo que elas são inseparáveis.
Vêm sempre juntas; e quando uma está sentada à vossa mesa, lembrai-vos de que a outra dorme em vossa cama.
Em verdade, vós estais suspenso como pratos de uma balança entre vossa tristeza e vossa alegria.
E sòmente quando estais vazios que estais equilibrados.
Quando o guarda do tesouro vos suspende para pesar seu ouro e prata, então deve a vossa alegria ou a vossa tristeza subir ou descer".

domingo, 24 de maio de 2009

Oferendar


Licença, Antônio Risério

Cisma e sigilo.

Na cara da escuridão, corisco.

Silêncio nos escuros
silêncio nos claros.
Iansã exige tambores

Ela é Vento vermelho
vento de garras e panos transparentes
nos meus cabelos
pretos.

Ê ê ê epa, Oiá ô!
Pra longe os mentirosos
daqui
Pra longe a falsidade
daqui
Afasta
De mim
Os traidores silenciosos
de Luizas Mahins.

Leopardo no ar
alto:
mulher corisco sigilo e cisma.

Orixá proteja e preteja.
Orixá minha casa
Mão de grandes chuvas,
pimentas cruas,
e cavalos bravos
pousada em meu Ori

Senhora que incendeia
- a bença Iá ô
lado esquerdo da minha cabeça.

Héèepá Héèi, Oyá ò!
Que dança, voa, redemunha
rajadas.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Trecho de "FERA" dedicado à Nelson Cavaquinho, por Jota A (João Antônio)


"... ouça o gemer das cuícas no samba, que o Rio é um saco só, não temos como escapar, somos podres de Deus, do Diabo e das forças intermediárias e, por vias das dúvidas - as tenhamos - devemos ir à praia e salvar Iemanjá e Ogum Beira-Mar e salvar, após, com humildade, todos os orixás, vamos saravarar, gemem as cuícas, ouça, ouça o diálogo mais que perfeito, mais que lapidado que o tarol e o tamborim combinam, console-se, seu peito tão marcado, quando relembre as rugas do que passou e não tropece nos cantos desta vida, você não é um menestrel de cabelos brancos apelidado Nélson Cavaquinho para quem cada esquina traz a dor de uma ferida e nem mágoa pôde calar seu violão ...
boa-briga Madame Satã, da fama, do ferrabrás da Lapa, do manso e do brabo a um só tempo, do mordido, do jogo-franco, do desempenado, do esquisito, do munhecaço, do fio desencapado, da casa de marimbondo, do enjoado, do mais-mais, do pobre, do problema, do pedra noventa, do atravessado, do sossega-leão, do machucho, do boiquira dos fuzuês e recaus, do porreta, do encalistrado, do quebra-tudo da Lapa até o Mangue, até a Ilha Grande, que botava quatro soldados pra correr só usando a pernada, sair a passeio, deixou, boate, cinema, deixou, os amigos falavam, pensou foi liberdade demais, e talento não é juízo, a casa está caindo, o país está caindo, mas você se acorda e se levanta, vai à padaria e compra pão e leite e depois vai trabalhar, você não quer nem saber quem envernizou a asa da barata, você, você que corta o mau olhado, a inveja e o olho grande, pendura um raminho de arruda na orelha, veste cueca pelo avesso, um dente de alho quanto mais roxo melhor, e bate três vezes seguidas na madeira, sai, azar, ziquiziera, desguia, urucubaca, sai, castigo, arreda, e tem no apartamento, em casa, no barraco, um pouco de guiné, pousa erva-de-santa-maria debaixo da cama, tem num vaso comigo-ninguém-pode, algumas espadas de Ogum, de São Jorge Guerreiro, você carrega um patuá, aí, enrustido no bolsinho interno da calça e, nele sete pedacinhos de sal grosso, e quando em quando, diante da igreja de Santa Teresinha você se persigna e se benze sobre os beiços como alguns tabaréus, jagunços e cangaceiros, e você aguenta o inesgotável repertório da canalhice dos políticos e a impunidade arreganhada, já banalizada desses uns, engravatados, enternados, poderosos, desses tais vitoriosos sem causa a não ser a causa própria, falantes, dos morros do Andaraí para as areias de Copa..."

Assim é o trecho vertigem de João Antônio, num parágrafo de três páginas que até parece uma benzedura! que precisamos mesmo pra curar tanto quebranto!

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Solto ao vento



A Belezura da Simplicidade


Cessem as janelas


Num imenso salão burguês
um canário-do-reino foi subornado.

sábado, 16 de maio de 2009

Garrincha

A bola é o ponto.
Seu corpo, a fuga.
Entre a bola e o corpo
A angústia do improvável
Drible, cancha do que há de vir.

Giros
Galo que dança
Em acasalamento mágico,
Seu corpo desenha
A linha efêmera
Que se desfaz
Ao susto lúdico
Da operária cansada
No silêncio cotidiano
Do trabalhador.

Então no vão do êxtase
Entre o espantalho e o pássaro
A angústia do devir
Clama uma solução plástica
Ao movimento.

Seu riso suspenso
Em imagens antigas de tv e cinema
Traç0u no gramado agora pardo
Sempre por uma direita confusa
Sinistra no que tem de fantasia
A alegria não domesticada
Da lei que já é velha
Quando a finta

Se impõe.

A bola é o ponto.
Seu corpo, a fuga.
E suas pernas tortas
São os instrumentos
De enganar bois
Arrastados para a morte
Nessa cancha aturdida
Da existência comum
-Perdida, imersa!-
Entre dois gols.

Ela sabe que tem olho amarelo

Xica da Silva, Pagu, Clementina
chovem Lispector

Pagu, Lispector, Xica da Silva
fazem o parto de Clementina

Clementina, Xica da Silva, Lispector
fundam a República Pagu

Lispector, Clementina, Pagu
raiou.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Um sopro histórico de MPB (1a. parte)

Estou sempre discutindo o porquê da minha insistência e prazer em ouvir, conhecer e estudar os nomes históricos de nossa MPB, em que se destaca, ao meu ver, o Samba Carioca e o Paulista. Tentarei explicar esse porquê, começarei por uma simples relação e um pouco da história de alguns gênios de ritmo, voz, melodia e letra/poesia que surgiram entre as décadas de 20, 30 e 40.

Pixinguinha, o maior músico da história da MPB, tocava diversos instrumentos com desenvoltura, especialmente a flauta e o saxofone; escreveu dezenas de músicas, como, por exemplo, Carinhoso, uma das composições mais conhecidas e tocadas em nosso país; fez incontáveis arranjos durante o tempo que trabalhou como orquestrador para gravadoras brasileiras; foi quem transformou o chorinho num estilo musical, estilo comparado ao jazz estadunidense pela capacidade de improvisação.

“Mas eu acho que o choro, acima de tudo, assim, de uma forma parecida com o jazz, é um espírito, uma maneira de tocar, de frasear, de sentir a coisa da improvisação, por exemplo, que existe nas duas músicas, mas que é muito diferente numa e na outra. É, o choro tem muito mais... A improvisação é menos ... A improvisação no choro é uma coisa muita mais rítmica (...) Cada vez se descobre que ele é maior do que se pensava. E eu acho que isso é interessante pro brasileiro ficar mais ligado e também sentir um pouco uma dimensão mais ampla, mais universalizante da coisa, da figura, porque o Pixinguinha é grande demais, tem que ser muito estudado e muito tocado, tem muita coisa para fazer sobre esse assunto (...) E teve uma vida toda muito interessante. Eu acho que foi um sujeito fiel a tudo que gostava, que acreditava, a coisa das raízes africanas, foi o cara que fez a síntese do choro, um dos pais da orquestração no Brasil, um monte de coisas.” Henrique Cazes, Programa Ensaio, TV Cultura, 1993.

“Em 1971, um daqueles momentos que levavam seus amigos e considerá-lo santo: sua mulher, dona Beti, passou mal e foi internada num hospital. Dias depois, foi ele acometido de mais um problema cardíaco, foi também internado no mesmo hospital, mas, para que ela não percebesse que também estava doente, colocava um terno nos dias de visita e ia visitá-la como se estivesse vindo de casa. Dona Beti morreu no dia 7 de junho de 1972, aos 74 anos de idade, e ele no dia 17 de fevereiro de 1973.” Pixinguinha, Vida e Obra, Sérgio Cabral.

Pixinguinha gravou, em 1968, o disco intitulado Gente da Antiga, com a presença de João da Bahiana, um dos pais do samba, que foi quem introduziu o pandeiro no samba e um dos maiores ritmistas do prato com faca, que nada mais é que tocar um prato de barro com uma faca de serra, extraindo disso uma sonoridade ímpar. Nos poucos discos que conseguiu gravar, sempre privilegiou os ritmos africanos, gravando corimás, com algumas palavras em dialeto africano, pontos de macumba de sua autoria, macumbas como Sereia e Folha por Folha e ritmos afro brasileiros como Lamento de Inhançã e Lamento de Xangô. Se não bastassem esses integrantes, o disco contou com a presença imponente de Clementina de Jesus, a mais impressionante voz já existente na música brasileira, descendente de escravos, pode-se dizer que sua voz era a ligação entre a senzala e o samba, África e Brasil. “Ficou conhecida como a Rainha Ginga ou Quelé, a primeira homenagem foi dada devido a sua importância e grandeza na música popular, e a segunda devido à corruptela carinhosa de seu nome. (...) Seu pai foi mestre de capoeira e violeiro. Com a mãe, aprendeu os cantos de trabalho, partidos-alto, ladainhas e jongos, assim como corimás e pontos de macumba. Trabalhou muitos anos como empregada doméstica e somente aos 63 anos começou a carreira artística.” Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. O disco foi gravado em apenas duas semanas, contava com músicas de domínio público que abordam temas das religiões africanas, sambas e choros consagrados, executados com maestria e total harmonia entre os músicos e cantores, pode ser visto como uma apresentação de luxo para quem quer conhecer os estilos, um dos maiores clássicos da MPB.

Noel Rosa, não o melhor, mas o mais importante compositor da música brasileira, pois antes dele o único tema das letras era o romantismo, escreveu canções que são regravadas até nos dias de hoje, como Com Que Roupa?, Feitio de Oração, As Pastorinhas, Feitiço da Vila e Filosofia. “Um sujeito que dizia: ‘Que vou fingindo que sou rico pra ninguém zombar de mim’. ‘Fingindo que sou rico ...’, porque ele era riquíssimo, arquimilionário, de inspiração, arquimilionário de amigos, de tudo. Noel era o próprio samba, Noel era a própria Vila Isabel. Ele imortalizou a Vila Isabel. E se imortalizou em suas obras.” Ciro Monteiro, Programa Ensaio, 1972.

O mesmo Noel, morto em 1937, com apenas 26 anos de idade, deixou mais de duzentas composições, muitas lançadas após sua morte. O Poeta da Vila se reunia num determinado bar preferido, na Guanabara, com o Rei da Voz, Francisco Alves, um dos três maiores cantores da nossa história, pragmático garimpador de compositores, que vivia pelos morros e escolas de samba, em busca de parceiros para seus lançamentos que sempre eram sucesso de público, o que ocorreu entre 1926 e 1952, quando morreu aos 54 anos, em acidente de carro. “Sua morte arrancou lágrimas no Brasil inteiro. Os seus restos mortais foram transportados para esta capital durante a noite, e no dia seguinte filas intermináveis passaram diante do seu esquife. Multidões compungidas, chorosas, saudosas do seu ídolo desaparecido.”, assim noticiou o Jornal do Brasil, em referência ao acontecimento.

Também era presença garantida, ao redor da mesa, nas noites distantes da boemia carioca, Ismael Silva, outro importante compositor, parceiro exclusivo de Chico Alves, durante os anos de 1928 a 1935; um dos fundadores da 1ª. Escola de Samba da história a Deixa Falar que depois se chamaria Estácio de Sá; que divide com Bide (Alcebíades Barcelos) o mérito de ter inventado o tamborim. “Chico Buarque o tem na condição de primeiro mestre. Vinicius de Moraes, que lhe exaltava na obra, em primeiro lugar, ‘aquela perfeita maciez melódica’, reputo-o ‘um dos três maiores do samba carioca’. José Lins Grunewald confirmava-o, ao lado de Sinhô e Noel Rosa, no ‘trio básico de sambistas puros da fase de ouro da nossa música popular.’ ” Moacyr Andrade, Ensaio, TV Cultura. Esta união produziu clássicos como Quem Não Quer Sou Eu, Adeus, A razão dá-se a quem tem, Não Tem Tradução.

Infelizmente, como boa parte dos compositores e ritmistas ligados as raízes de nossa musica, Ismael Silva morreu pobre e solitário em 1978 com 72 anos de idade. “Pois bem, então eu vivo sozinho, infelizmente, mas eu tenho planos feitos, não hei de ficar assim toda a vida, não. Inda tenho que me casar, mesmo assim(...) Sou negro e como negro devo achar meu caminho na vida. A libertação muito recente não modificou em nada nossa situação. Somos postos de lado nas escolas, nos serviços. A identidade que nos envolve é penosa e devemos lutar para preservá-la. (...) Anote ainda duas coisinhas mais aí: o samba provocou a substituição da música européia pela de origem africana, na sociedade brasileira e mais: quando é que a gente poderia imaginar que aquelas brincadeiras fossem dar nisso? Uma coisa de esquina encher avenida? Hoje isso não é mais escola. É universidade, é academia, é faculdade, sei lá! A festa maior. Que coisa! (...) Faço sambas, vivo na pendura – vou ser internado para uma cirurgia. Tenho 72 anos. Quando sair do hospital vou fazer o circuito universitário, me apresentar em shows, cair nas atividades. O velho sambista tem de lutar pela sobrevivência, não é? ” Ismael Silva, Programa Ensaio, 1973 e em depoimentos para livro.

Para enriquecer as partes do texto, sempre trarei uma letra, que se destaca em meio a tantas obras de arte. Tivemos diversos ilustres desconhecidos do “grande público”, como Cândido das Neves, um compositor e poeta negro de muitas qualidades, que morreu muito novo, de tuberculose, em 1934, deixando letras como A Última Estrofe, Lagrimas, Apoteose do Amor e Céu Moreno, que transcrevo logo abaixo.

Céu Moreno. Candido das Neves.

Vem ó musa, vem cantar ...
As glórias do Senhor
eleva o estro meu
Vem, ajuda-me a ensinar
a Deus fazer um anjo
da cor que Ele não tem céu.

Deus fizeste só então
nevados serafins
de olhares tão azuis
Deus, perdão meu Deus, mas esqueceste
não fizestes um anjinho
moreninho de áurea luz.

Senhor, deixai quando eu morrer
minh'alma em penitência
aqui mesmo sofrer
Não quero a vossa santa luz
só de anjos liriais
de olhares tão azuis.

Deixai que minh'alma em seu fervor
minore a sua dor
aqui entre os rosais
Deixai, deixai minh'alma entre as verbenas
entre as rosas bem morenas
moreninhas ideais.

Se São Pedro se enganasse
e um dia eu lá entrasse
sem mesmo Deus saber
eu poria em frente aos anjos
um turbilhão de arcanjos
morenos a resplandecer.

Mas um dia hei de tentar
e um anjo hei de levar
aos pés de Deus ... e enfim
hei de suplicar a Madalena
que também fique morena
que é formoso um céu assim.



Itapetininga