sexta-feira, 22 de maio de 2009

Trecho de "FERA" dedicado à Nelson Cavaquinho, por Jota A (João Antônio)


"... ouça o gemer das cuícas no samba, que o Rio é um saco só, não temos como escapar, somos podres de Deus, do Diabo e das forças intermediárias e, por vias das dúvidas - as tenhamos - devemos ir à praia e salvar Iemanjá e Ogum Beira-Mar e salvar, após, com humildade, todos os orixás, vamos saravarar, gemem as cuícas, ouça, ouça o diálogo mais que perfeito, mais que lapidado que o tarol e o tamborim combinam, console-se, seu peito tão marcado, quando relembre as rugas do que passou e não tropece nos cantos desta vida, você não é um menestrel de cabelos brancos apelidado Nélson Cavaquinho para quem cada esquina traz a dor de uma ferida e nem mágoa pôde calar seu violão ...
boa-briga Madame Satã, da fama, do ferrabrás da Lapa, do manso e do brabo a um só tempo, do mordido, do jogo-franco, do desempenado, do esquisito, do munhecaço, do fio desencapado, da casa de marimbondo, do enjoado, do mais-mais, do pobre, do problema, do pedra noventa, do atravessado, do sossega-leão, do machucho, do boiquira dos fuzuês e recaus, do porreta, do encalistrado, do quebra-tudo da Lapa até o Mangue, até a Ilha Grande, que botava quatro soldados pra correr só usando a pernada, sair a passeio, deixou, boate, cinema, deixou, os amigos falavam, pensou foi liberdade demais, e talento não é juízo, a casa está caindo, o país está caindo, mas você se acorda e se levanta, vai à padaria e compra pão e leite e depois vai trabalhar, você não quer nem saber quem envernizou a asa da barata, você, você que corta o mau olhado, a inveja e o olho grande, pendura um raminho de arruda na orelha, veste cueca pelo avesso, um dente de alho quanto mais roxo melhor, e bate três vezes seguidas na madeira, sai, azar, ziquiziera, desguia, urucubaca, sai, castigo, arreda, e tem no apartamento, em casa, no barraco, um pouco de guiné, pousa erva-de-santa-maria debaixo da cama, tem num vaso comigo-ninguém-pode, algumas espadas de Ogum, de São Jorge Guerreiro, você carrega um patuá, aí, enrustido no bolsinho interno da calça e, nele sete pedacinhos de sal grosso, e quando em quando, diante da igreja de Santa Teresinha você se persigna e se benze sobre os beiços como alguns tabaréus, jagunços e cangaceiros, e você aguenta o inesgotável repertório da canalhice dos políticos e a impunidade arreganhada, já banalizada desses uns, engravatados, enternados, poderosos, desses tais vitoriosos sem causa a não ser a causa própria, falantes, dos morros do Andaraí para as areias de Copa..."

Assim é o trecho vertigem de João Antônio, num parágrafo de três páginas que até parece uma benzedura! que precisamos mesmo pra curar tanto quebranto!

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