segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Parque Estrela Dalva

"É onde o povo joga os cachorros mortos para os urubus comerem."–Arredores de Brasília, Luziânia. Frase de uma mãe, sobre o suposto lugar onde encontraria o corpo do filho desaparecido.

A mãe andou, atravessada do campo, por cerca de um tempo grande. Cansada, o lenço na cabeça, as mãos apanhadas de vento e calos. As palavras perdiam-se como da vez que tentara ler o livro da escola. Vinham zunindo. Costumava pensar que tudo agora faltava, a lata d’água, a construção de mais um quarto no sobrado sem reboque, ou as crianças, caçando alguma pipa no fim do mundo. E só parecia o barulho da abelha dentro, dentro, dentro.

No entanto, a voz do seu menino mais velho não saía dos ouvidos. Três dias que ela esperava. Em vão não preenchido. A aflição viera na primeira noite. Sem aviso, ele tinha deixado as coisas desarrumadas, mas sempre fizera desse modo. Depois, no almoço, estava lá. Talvez, sem perceber, ele tivesse entrado numa grande bolha de sabão que lhe levara longe. Não dormira em casa. A roupa deixada no tanque tornara-se uma pasta. Três dias. O filho sumido, tempo sem espaço, os lugares sem mudanças.

Andara muito para chegar ali, saíra em desvario, sem falar coisa, as palavras que sempre surgiram do trabalho num país injusto, calhavam mortas. Seguiria sem desvio em direção contínua, mas, a poucos minutos de ver as aves pesadas e leves do ar, parara para colher pedras. Como se pegasse na mão lágrimas calcificadas. Mãe agachada, arfando os entraves do peito, do homem posto de cachaça, da violência do salário, de uma gravidez entrada no caminho inverso da barriga.

Então caía o céu. As cores num precipício. Perto da lavoura cegada, pássaros que não voavam. Ah, tivesse um peito livre, um peito assim, sem as pedras em sua mão. De mãe. Era pouco agora o caminho para encontrar o filho morto. Mas, nos olhos dela, a vida dele passava, mão da ave abraçando o mar. O menino sendo de sua barriga, sabendo andar, correndo pelas beiras, fazendo o espaço da ruelas a volta da escola, já quase homem, bebendo, tendo a roupa do trabalho. Como descolar da retina seu crescimento?

A retina dói mais que o coração.

A retina dói, dói tanto.

Em voz baixa, rezou o que não sabia. Apagar o dia antes do ontem, sumido o moleque, vieram de chofre seus dezessete anos, nessas últimas horas de boi arrastado, macerando o capim das manhãs. Em busca, faltavam-lhe forças para levantar o corpo, pôr os pés em frente, acontecer no campo o fim. Onde sabia que ele devia estar. Porque saído assim cedo de casa, menino bom, pretinho em volta da vida, não voltara. Diziam, volta, sentindo falta de casa, volta, debandou pros outros lados, mas era trabalhador, tem escola...

Seu bairro cortou-se em procura. Mais desapareceram, uns quatro ou cinco. Outras mulheres choraram. As casas tiveram medo, janelas ganharam mudez, as portas abriam-se só pela gente do interior das pequenas salas, como se não existissem outros cômodos, senão aqueles que recebiam a rua.

E o carnaval, então, servido na televisão? Estourando na tela, para quê?

A retina dói mais que tudo.

Foi aí que sentada, atônita, decidiu andar. Sabia a direção, ensinaram o lugar. Lá onde o povo joga os cachorros...

Não chorava, mas suas mãos carregavam as duas pedras. Mais esse monte, uns passos indecisos e veria no lugar o corpo do filho. Porque nesse país, morrer é o mato que vem do chão. Lento, preciso, inexorável. As pedras cresciam bolas, enchiam suas palmas, estavam gordas como um feto, e os dedos tinham seu pulsar de rocha, coisa viva, coisa morta. Enquanto os olhos começaram a descobrir o campo, viu os bichos voando no arco do ar. Pousando na ponta aguda da vida deixada. As pedras, as pedras pediam-se de encontro aos pássaros.

A retina seca o tempo. O braço em convulsão lançou uma, depois outra. Na violência, o risco desenhado encontrou o grupo sobre o que lá estava. Seu grito materno comeu as entranhas. Cada ave ganhou o voo, pairou num bater de asas brando, depois desceu de novo. Os grasnados, fugidos no vento, brotaram o silêncio. Angulosos, os urubus pastavam um único cachorro sem vida, jogado por alguém do povo no começo do dia.

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